Autores: Ambrósio Joaquim, Balctor de Mendonça, Cinelly Ngonga, Ernesto Sito, Filomena Canhama, Francisco Canduco, Jaime Branco e Vicente Muteca

Suporte acadêmico: Faculdade de Direito da Universidade Mandume Ya Ndemufayo

INTRODUÇÃO

O conceito de Estado não é unívoco, muito pelo contrário, podemos defini-lo por diversas perspectivas que nos são propostas por diversos autores, seja como comunidade emanada de uma ordem jurídica, seja como pessoa colectiva pública (pessoa jurídica), ou ainda como incorporação do conceito de sociedade. Não procederemos aqui a uma busca por qualquer definição, pois para que se compreenda este trabalho basta que se entenda que o Estado é a unidade (moderna) fundamental de qualquer sociedade que se pretenda regida pelo Direito.

O grande problema que se coloca entre essa coexistência do Direito e o Estado é saber como um é criado e como o outro o recebe e aplica, e nesse contexto vários autores por diversas doutrinas têm tentado explicar a relação Estado-Direito, com destaque para o alemão Hans Kelsen que procura analisar algumas das doutrinas disponíveis a fim de explicar os moldes dessa relação.

Neste trabalho abordaremos parte dessa relação Estado-Direito, analisando o Estado como sujeito de Direitos e Deveres, na perspectiva de Hans Kelsen.

Pretendemos com isso:

  • Entender a relação Estado-Direito;
  • Explicar a sujeição/imposição do Estado face ao Direito;
  • Analisar a as principais doutrinas a volta dessa relação;
  • Compreender como, ao Estado, são atribuídos direitos e impostos deveres.

CAPÍTULO I – A AUTO-OBRIGAÇÃO DO ESTADO

O Estado como sujeito que actua através dos seus órgãos, como sujeito de imputação, e como pessoa jurídica, é a personificação de uma ordem jurídica. Contudo diferencia-se de entes que apesar de personificarem uma ordem jurídica não pertencem a categoria de Estados.

Mas como é que o Estado, enquanto personificação da ordem jurídica, onde direitos e obrigações são estipulados, pode ter obrigações e direitos?

Bom, a resposta a essa questão foi alvo de discussão de muitos doutrinadores, daí encontrarmos, principalmente duas posições que tentam explicar essa auto-obrigação dos Estados.

1.1. Doutrina Tradicional

A Doutrina Tradicional recorre a dualidade entre o Estado e o Direito, interpretando a sujeição do Estado ao Direito como não natural. Para os que seguem essa linha de raciocínio, entendem o Estado, como um ser supra-humano. Daí que não se pode falar de direitos e obrigações do Estado, ao mesmo nível que se fala de Direitos e Obrigações dos Indivíduos, uma vez que nos Indivíduos, esses direitos e obrigações produzem efeitos aquando da sua conduta, enquanto que no Estado, não podemos falar em conduta, uma vez que este personifica uma ordem.

1.2. Doutrina da Sujeição do Estado face ao Direito

A posição dos tradicionalistas é criticada por aqueles que defendem que o Estado se sujeita sim ao Direito por ele criado, na medida em que o Direito é criado por indivíduos que incorporam e materializam o poder e instituição do Estado, e por sua vez têm as suas acções pautadas por esse Direito, tanto que “eles [só] são órgãos do Estado na medida em que ajam em conformidade com as normas que regulam essa função criadora do Direito” (Hans Kelsen, 1998, p. 285). Nada impede que esses órgãos sejam obrigados, ou regulados, por normas jurídicas nas suas relações com os indivíduos.

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A base desta teoria, assenta na ideia de que o Estado, apesar de criador do Direito, sujeita-se a este por ser composto por indivíduos que o manifestam, e esses indivíduos devem ser regidos, na sua conduta por normas que os impeçam de exceder, ou os limitem na realização das suas funções. Ou seja, a ideia de o Estado ser o poder criador do Direito, enquanto personificação da ordem jurídica, não o impede de se sujeitar a este, pois na realidade, o Direito é criado por indivíduos humanos.

Importa ainda destacar a ideia de Hans Kelsen, que muito claramente explica a criação do Direito pelo Estado, ao dizer que “o Direito é criado pelo Estado, apenas na medida em que seja criado por um órgão do Estado, ou seja, na medida em que o Direito seja criado de acordo com o Direito”, (Hans Kelsen,1998, p. 285).

Jorge Miranda (2003), um dos adeptos da doutrina da Sujeição do Estado face ao Direito, aborda, em sede do Direito Constitucional, a relação Estado-Direito, explicando que “o Estado não pode ser compreendido sem o Direito – que transforma os homens em cidadãos, que estabelece as condições de acesso aos cargos públicos, que confere segurança às relações entre os cidadãos e entre eles e o poder”.

Para lá dos elementos histórico, geográfico, económico, político, moral e afectivo, encontra-se sempre um elemento jurídico traduzido na criação de direitos e deveres, de faculdades e vinculações. Os governantes têm de ter o direito de mandar e os governados o dever de obedecer. Não bastam a força ou a conveniência: não há uma ideia de Poder sem uma ideia de Direito e a autoridade dos governantes em concreto tem de ser uma autoridade constituída – constituída por um conjunto de normas fundamentais, pela Constituição, como quer que esta se apresente.

Do mesmo modo, o povo e o território não são o povo e o território do Estado senão em termos de Direito – Direito interno desse Estado e Direito internacional. A pertença de alguém ao povo depende das leis da nacionalidade ou cidadania e envolve determinado estatuto dentro da ordem jurídica estadual; a pertença de alguma porção de território ao Estado depende do Direito internacional;

CAPÍTULO II – OS DEVERES DO ESTADO

Os Deveres e Direitos do Estado, são Deveres e Direitos dos Órgãos do Estado. A existência de Deveres e Direitos do Estado não implica o problema da auto-obrigação, mas o da imputação.  Os Deveres e Direitos do Estado são também dos indivíduos que funcionem como órgãos do Estado, ou seja que executem uma função específica determinada pela ordem jurídica. Essa função pode ser o conteúdo de um Direito ou de um Dever.

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2.1. Os Delitos do Estado e o Problema da Imputação

A Função de um órgão do Estado será o conteúdo de uma Obrigação (Dever), quando colocar o indivíduo numa posição de sujeição à uma sanção. Contudo essa sanção não é dirigida ao indivíduo enquanto órgão do Estado, e veremos o porquê.

O delito constituído pelo facto de um órgão do Estado não ter executado a sua função do modo prescrito pela ordem jurídica, não pode ser imputada ao Estado, já que um indivíduo só pode ser considerado órgão do Estado na medida em que a sua conduta se conforme às normas jurídicas que determinam a sua função. Portanto se um indivíduo viola uma norma jurídica, não pode ser atribuída essa violação ao papel de órgão do Estado.

Um delito que é a violação da ordem jurídica nacional não pode ser interpretada como um delito do Estado, portanto, não pode ser imputado ao Estado, já que a sanção é interpretada como um acto do Estado. O Estado não pode (…) querer ambos, o delito e a sanção (Hans Kelsen, 1998, pg. 287).

Contudo, surge a questão, de quando é que um delito poderá ser imputado ao Estado?

Num plano geral, apenas o delito cometido no direito internacional poderá ser imputado ao Estado, assim como o delito cometido no direito nacional pode ser imputado a qualquer pessoa jurídica dentro da ordem jurídica nacional. E, a sanção em Direito Internacional é imputada à comunidade internacional, assim como a sanção, no Direito Nacional, é imputada ao Estado, entenda-se aqui a sanção como emanando de uma pessoa, que não aquela a quem é atribuído o delito. Ou seja, o Estado não pode cometer um mal no sentido do Direito Nacional, mas o pode cometer no Direito Internacional.

Contudo, torna-se necessário compreender que a não imputação do delito ao Estado, não impede que este seja obrigado a reparar o dano que resulta do não-cumprimento da sua obrigação. Significa isto que o órgão do Estado é obrigado a anular o acto (delito) cometido. Punir o indivíduo que cometeu o acto e reparar esse acto com o património do Estado. Nesse caso, a sanção não é dirigida ao Estado, mas ao indivíduo, que na condição de órgão do Estado, violou uma obrigação que lhe cabia.

CAPÍTULO III – OS DIREITOS FACE AO ESTADO

Como já vimos, na relação Estado-Direito, o Estado pode ser sujeito de Direitos, assim como podem ser invocados direitos contra ele, que não constituam obrigações do Estado propriamente ditos, como explicamos no capítulo anterior.

3.1. Direitos do Estado

O direito do Estado existe quando a execução de uma sanção depende de uma acção judicial apresentada por um órgão do Estado, mais precisamente, de um funcionário público. No campo do Direito Civil, o Estado possui direitos na mesma medida que as pessoas privadas. Nesse caso, o direito do Estado tem como contraparte o dever de uma pessoa privada. A mesma actividade interpretativa pode ser utilizada no Direito Criminal, na medida em que a sanção criminal só poderá ser aplicada com base em uma acção do promotor público. O acto que leva a aplicação da sanção deve ser entendida como acto do Estado, podemos dizer então, que é um direito do Estado punir os criminosos, e dizer que estes violaram um direito do Estado.

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3.2. Direitos contra o Estado

Uma obrigação do Estado corresponde um direito de uma pessoa privada apenas se a pessoa privada, cujo interesse juridicamente protegido foi violado, puder ser uma parte no processo resultante, no caso de a obrigação permanecer não concretizada.

O processo pode ter como objectivo a anulação do acto antijurídico, se o direito tiver sido lesado por acto antijurídico, ou a reparação pelo dano causado antijuridicamente se o direito tiver sido lesado pela omissão antijurídica de um acto do Estado prescrito pelo Direito. Esses direitos contra o Estado, existem, não só no Direito Civil, mas no Direito Público.

CONCLUSÃO

Na relação Estado-Direito podemos evidenciar duas questões que Hans Kelsen procura responder. A primeira prende-se com a relação Estado-Direito propriamente dita, aqui entendemos que apesar dos vários inconvenientes apontados pelos tradicionalistas, é o Estado que cria o Direito, e a ele está vinculado por submissão, pelos seus órgãos representados por indivíduos.

E a segunda prende-se com a titularidade do Estado de Deveres e Direitos. O Estado sujeita-se ao Direito, e com isso adquire personalidade jurídica, como Pessoa Colectiva Pública, e sobre esta assentam Direitos, que tem como principal contraparte os particulares, e Deveres que o abrigam, principalmente, com os particulares.

Todo esse conflito doutrinal deve-se ao facto de a doutrina tradicional ver no Estado, um ser supra-humano, que é ao mesmo tempo homem e autoridade. E que apenas a conduta humana deve ser objecto de regulamentação humana, e sendo o Estado a personificação de uma ordem, é impossível conferir a este, Direitos e Obrigações, o que, como já provamos, é infundado.

Também importa ressaltar a inimputabilidade de delitos ao Estado a nível do Ordenamento Jurídico Interno, porque, já que ao Estado cabe sancionar, não se configura lógico atribuir-lhe delitos, até porque esses são consequências de funções desempenhadas por indivíduos que como órgãos do Estado, não tiveram as suas acções pautadas pelo Direito, que ele (Estado) mesmo definiu e, portanto, não podem ser associadas à ele. Ao Estado só podem ser imputadas acções que estejam de acordo com as normas por ele definidas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KELSEN, Hans – Teoria Geral do Direito e do Estado (Traduzido). 3ª Ed. São Paulo. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 283-289. ISBN: 85-336-0950-7

MIRANDA, Jorge – Teoria do Estado e da Constituição. 3ª Ed. Rio de Janeiro. Editora Forense, 2003. p. 113-118.

Escrito por

Balctor Mendonça

Balctor de Mendonça é um jovem estudante de Direito, e amante do ecossistema Digital, que procura a todo o custo desenvolver o ambiente tecnológico na sua região aproveitando as suas valências.